Poeta ocupava a cadeira
n° 10 da ABL e morreu nesse domingo, na Espanha
Para os alagoanos que
querem conhecer ou relembrar a obra de Lêdo Ivo, a Gazetaweb preparou uma
coletânea especial de textos deste poeta, cronista, contista, romancista,
jornalista e ensaísta que ocupava a cadeira de n° 10 da Academia Brasileira de
Letras (ABL).
Lêdo Ivo nasceu no dia
18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), filho de Floriano Ivo e Eurídice
Plácido de Araújo Ivo. Casado com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo
(1923-2004), teve o casal três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo. O
escritor teve um infarto e morreu, nesse domingo (23), em Sevilha, na Espanha.
No plano internacional,
Lêdo Ivo é detentor do Prêmio de Poesia del Mundo Latino Victor Sandoval
(México, 2008), do Prêmio de Literatura Brasileira da Casa de las Américas
(Cuba, 2009) e do Prêmio Rosalía de Castro, do PEN Clube da Galícia (Espanha,
2010).
Ao longo de sua vida
literária, Lêdo Ivo tem sido convidado numerosas vezes para representar o
Brasil em congressos culturais e participar de encontros internacionais de
poesia.
É sócio efetivo da
Academia Alagoana de Letras, sócio honorário do Instituto Histórico e
Geográfico de Alagoas, sócio efetivo da Academia de Letras do Brasil, sócio
honorário da Academia Petropolitana de Letras; sócio correspondente do
Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.
Escritor ocupava a
cadeira n° 10 da ABL (Foto: Marcelo Albuquerque/GA)
CONFIRA
ABAIXO TEXTOS DE LÊDO IVO
A Queimada
Queime tudo o que
puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e
certidões
as inconfidências dos
confrades ressentidos
a confissão
interrompida
o poema erótico que
ratifica a impotência
e anuncia a
arteriosclerose
os recortes antigos e
as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros
esfaimados
nenhuma herança de
papel.
Seja como os lobos :
more num covil
e só mostre à canalha
das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado
como um caracol.
Diga sempre não à
escória eletrônica.
Destrua os poemas
inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo
tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores
do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o
seu segredo.
A verdade não pode ser
dita
Soneto de Abril
Agora que é abril, e o
mar se ausenta,
secando-se em si mesmo
como um pranto,
vejo que o amor que te
dedico aumenta
seguindo a trilha de
meu próprio espanto.
Em mim, o teu espírito
apresenta
todas as sugestões de
um doce encanto
que em minha fonte não
se dessedenta
por não ser fonte
d'água, mas de canto.
Agora que é abril, e
vão morrer
as formosas canções dos
outros meses,
assim te quero, mesmo
que te escondas:
amar-te uma só vez
todas as vezes
em que sou carne e
gesto, e fenecer
como uma voz chamada
pelas ondas.
Minha Pátria
Minha pátria não é a
língua portuguesa.
Nenhuma língua é a
pátria.
Minha pátria é a terra
mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em
Maceió.
São os caranguejos que
correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas
continuam molhando os meus pés quando
[sonho.
Minha pátria são os
morcegos suspensos no forro das igrejas
[carcomidas,
os loucos que dançam ao
entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas
constelações.
Minha pátria são os
apitos dos navios
e o farol no alto da
colina.
Minha pátria é a mão do
mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros
apodrecidos
e os cemitérios
marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos
[e impaludados não
param de
[tossir e tremer nas
noites frias
e o cheiro de açúcar
nos armazéns portuários
e as tainhas que se
debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola
enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre
os currais de peixe.
A língua de que me
utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa
é a pátria.
Ela serve apenas para
que eu celebre a minha grande e pobre pátria
[muda,
minha pátria
disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua
e sem palavras.
As Ferragens
Em Maceió, nas lojas de
ferragens,
a noite chega ainda com
o sol claro
nas ruas ardentes. Mais
uma vez o silêncio
virá incomodar os
alagoanos. O escorpião
reclamará um refúgio no
mundo desolado.
E o amor se abrirá como
se abrem as conchas
nos terraços do mar,
entre os sargaços.
Nas prateleiras, os
utensílios estremecem
quando as portas se
cerram com estridor.
Chaves-de-fenda,
porcas, parafusos,
o que fecha e o que
abre se reúnem
como uma promessa de
constelação. E só então é noite
nas ruas de Maceió.
Soneto da Conciliação
Que o amor não me
iluda, como a bruma
que esconde uma
imprevista segurança.
Antes, sustente o chão
em que descansa
o que se irá, perdido
como a espuma.
Veja que eu me elegi,
mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e
sem lembrança
de aproveitar apenas a
esquivança
de que o amor não
prescinde em parte alguma.
Que também não se
alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma
oferta,
reunir o acessório e o
imprescindível.
Antes, atente a tudo o
que se tece
distante do seu dia
inconsumível
que dá certeza à noite mais
incerta.
Soneto dos Vinte Anos
Que o tempo passe,
vendo-me ficar
no lugar em que estou,
sentindo a vida
nascer em mim, sempre
desconhecida
de mim, que a procurei
sem a encontrar.
Passem rios, estrelas,
que o passar
é ficar sempre, mesmo
se é esquecida
a dor de ao vento
vê-los na descida
para a morte sem fim
que os quer tragar.
Que eu mesmo, sendo
humano, também passe
mas que não morra nunca
este momento
em que eu me fiz de
amor e de ventura.
Fez-me a vida talvez
para que amasse
e eu a fiz, entre o
sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para
a noite escura.
O Barulho do Mar
Na tarde de domingo,
volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos
jamais terminam de morrer
de suas mortes
tuberculosas e cancerosas
que atravessam a
maresia e as constelações
com suas tosses e
gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo
a voltar a esta vida
em que desde a infância
eles viviam lentamente
com a amargura dos dias
longos colada às existências monótonas
e o medo de morrer dos
que assistem ao cair da tarde
quando, após a chuva,
as tanajuras se espalham
no chão maternal de
Alagoas e não podem mais voar.
Digo aos meus mortos:
Levantai-vos, voltai a este dia inacabado
que precisa de vós, de
vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas
ruas tortas de Maceió. Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas
sobre o mormaço.
Na tarde de domingo,
entre os mausoléus
que parecem suspensos
pelo vento
no ar azul
o silêncio dos mortos
me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.
No lugar em que estão, não há retorno.
Apenas nomes em
lápides. Apenas nomes. E o barulho do mar.
Balada do Arraial
Não vim para te amar
mas para descobrir
o que teu corpo tem
e que não posso ver.
No colégio falavam
de tantas coisas tuas!
Neste campo deserto
podemos começar.
Um dia serei poeta
e cantarei este
instante
e te chamarei na certa
de minha primeira
amante.
Oh! deixa que eu entre
para o Amor
com os olhos abertos...
A Resposta
Seu nome era Serafim
Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena, decerto a sua figura
deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca
e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante
abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar
o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima
sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas,
possuía sílabas.
Ele morava no Farol,
exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o
quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia
entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas
flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois
andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada.
Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem
guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita
de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura
rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por
afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as
copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns
cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para
que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim
Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal —
as suas presenças vigilantes.
— Aqui mora Serafim
Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde,
voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o
acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no
Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em
que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se
perdiam nas escurentas ruas tortuosas.
O palacete branco
vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das
presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos
azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a
nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o
portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os
diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e
vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um
navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade
perdida sulcando o mar sem amarras.
Era o palácio de
Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e
era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, solfejando-se no ar
eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém
de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui
mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado,
bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena
cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano
ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió,
enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas
em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de
árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável
dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira,
como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e
tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por
isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de
Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e
flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares
que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os
que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar
ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e
siso.
Embora eu não tivesse
conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de
seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e
devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e
passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão,
assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de
domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e
exclamei:
— Olhe o Serafim Costa!
A exclamação fez
espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar
era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava
pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o
velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na
aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de
Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:
— Não é o Serafim Costa
— e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o
poderoso e mitológico patrão.
E assim ele ficou
sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar.
Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu
repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer,
juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente
esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios
pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa
infindável soletração do absoluto.
Muitos anos depois,
desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva
do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que
ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos
sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os
dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o
universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O
invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra
alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim
silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas
que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!
Chamei a quem, a que? E
ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra
papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados
dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das
mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de
Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já
agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de
anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.
E, assim, obtive a
resposta.
24/12/2012 09h59
Fonte:
Gazetaweb
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