Sociedade
O
Uber e o mito da panaceia tecnológica
por Patrick Luiz Sullivan De
Oliveira* —
publicado 19/07/2015 04h55, última
modificação 19/07/2015 05h00
O Uber se apresenta como um
fenômeno da “economia compartilhada”, mas a ideia é desonesta. O aplicativo
nada mais é do que uma empresa agressiva tentando maximizar seus lucros
Recentemente, taxistas em cidades
espalhadas pelo país foram às ruas para protestar — em certos casos
violentamente — contra a introdução do Uber no Brasil. Na França a situação foi
ainda mais extrema, com carros pegando fogo e a Uber por fim decidindo
suspender o seu segmento mais low-cost no país dos gauleses.
Simpatizantes do Uber criticaram
severamente os taxistas (e os reguladores, que não andam satisfeitos com o fato
de que o serviço não cumpre as normas estabelecidas para o transporte de
passageiros). Dizem que eles querem barrar a competição e manter o monopólio de
passageiros, que não são nada mais do que uma classe corporativista reacionária
com medo de perder os seus privilégios.
Mas as coisas não são tão simples
assim.
O Uber não é nenhuma panaceia,
muito menos uma empresa beatificada. Através de um marketing engenhoso,
companhias multibilionárias do Silicon Valley apresentam para seus consumidores
uma autoimagem positiva e utópica que é extremamente tentadora nesses tempos
econômicos tenebrosos.
O Uber diz que faz parte de um novo
fenômeno, o da “economia compartilhada” — um termo que conjura a imagem de
pessoas alegres e bem dispostas ajudando umas às outras, todas ganhando uma
parcela justa no processo. Mas a ideia de que o Uber enquadra-se nesse conceito
de “economia compartilhada” é desonesta, pois o aplicativo nada mais é do que
uma empresa extremamente agressiva tentando de tudo para maximizar seus lucros.
Talvez seja até o melhor exemplo
que temos atualmente de um capitalismo desenfreado abastecido por enormes
reservas de capital que primeiro destroem a competição para depois monopolizar
o mercado (o exemplo da Amazon). Com um exercito de lobistas e de advogados o
Uber vem penetrando mercados de maneira beligerante, curvando governos
municipais aos seus desejos e colecionando multas por não dar ouvido aos
reguladores.
Muitos já falaram sobre os
benefícios que o Uber supostamente traz, então talvez seria hora de dar voz a
algumas criticas que precisam ser tomadas em consideração para o debate
progredir de uma forma realmente honesta.
Do lado do consumidor temos a
questão da regulamentação, principalmente no quesito da segurança. Como a
história dos séculos XIX e XX demonstra, não podemos contar com o “mercado”
para arcar os custos sociais dos avanços industriais e tecnológicos. As
condições de trabalho dos mineradores — com seus pulmões tachados de preto —
não melhorou por livre e espontânea vontade das mineradoras. E as industrias
químicas não começaram a lidar com o lixo toxico de uma maneira mais segura
para o meio ambiente e para as seus vizinhos só porque são conscientes.
Seria ingênuo esperar que o Uber
resolveria questões relativas a inspetorias de veículos, paliação do risco
sofrido por passageiros, motoristas e pedestres, emissão de gazes, entre
outras.
Quem é legalmente responsável no
caso de um acidente envolvendo um carro da Uber?
Fica também a dúvida quanto a ética
do sistema de “surge pricing” (onde os preços aumentam simultaneamente com a
demanda) adotado pela empresa. O Uber foi criticado severamente
quando seus preços explodiram durante o sequestro em massa que ocorreu dezembro
passado em Sidney (o preço mínimo para
usar o serviço subiu para $100). –original sem grifo-
Tudo isso demonstra que o serviço
insere-se em um complexo sistema de transporte publico — um problema de
política urbana que deveria ser sujeito a deliberação de todos os partidos
afetados.
Podemos também analisar a situação
pelo ângulo da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, a cada dia cresce o
descontentamento dos motoristas do Uber. Eles têm visto o seus percentuais de
lucro cair, mesmo continuando em ter que arcar com todos os riscos envolvidos
em prestar um serviço de transporte.
Inclusive, essa exímia empresa da
“economia compartilhada” foi acusada de surrupiar gorjetas que clientes
deixavam aos motoristas. (Não menos preocupantes é como a empresa manuseia os
dados privados de seus usuários, ainda mais depois que um de seus executivos
sugeriu usar essas informações para vendetas contra jornalistas que fizeram
reportagens que não foram favoráveis à imagem do Uber).
Esses fatores explicam porque nos
EUA temos um crescente movimento para que os motoristas deixem de ser autônomos
e virem empregados. Não podemos esquecer que o Uber é parte de um processo que
anda ganhando força nessa economia global onde os termos são ditados pelo
capital financeiro: a criação de uma classe maior de subempregados cada vez
mais dependentes de bicos aqui e ali para sobreviver enquanto os lucros dos
investidores crescem a níveis exorbitantes.
O CEO do Uber, Travis Kalanick,
acusou os críticos do aplicativo de quererem “parar o progresso”. Isso nada
mais é do que uma estratégia retórica que busca marginalizar aqueles que não
compartilham a visão (e os lucros) das elites industriais, tecnológicas e
financeiras.
Como o historiador François Jarrige
demonstra em seu livro Techno-critiqes: Du refus des machines à la contestation
des technosciences (Paris: La Découverte, 2014), esse discurso marginalizador
nasceu junto com a Revolução Industrial e consolidou-se na Belle Époque,
justamente o período em que surgiram os grandes barões do industrialismo e um
movimento trabalhista que buscava uma segurança social melhor e salários mais
dignos ante uma desigualdade crescente.
Hoje, em 2015, temos a Uber
estimada em mais de 40 bilhões de dólares, o seu CEO com seus 5.3 bilhões de
patrimônio e seus motoristas autônomos (“driver partners”, de acordo com a
“novilíngua” do Silicon Valley) — esses últimos cada vez mais desiludidos com o
potencial econômico de um trabalho instável ao mesmo tempo em que ameaçam o
ganha pão de milhões de taxistas pelo mundo.
São justamente as vozes mais
criticas que demonstram que o “progresso” pode seguir caminhos diversificados. Podemos
“des-inventar” certas inovações que se mostraram perigosas, como o DDT e o CFC,
e podemos procurar maneiras de orientá-las em direções mais positivas e
seguras, como vem sendo o caso da energia nuclear.
A ideologia que brota do Silicon
Valley apresenta a tecnologia como uma coisa inerentemente positiva ou, na pior
das hipóteses, neutra. Mas a tecnologia nunca é imune a dinâmicas de poder. O
“progresso” não é alcançado através de inovações tecnológicas, mas sim graças a
escolhas políticas de como (e se) incorporaremos essas inovações dentro do
nosso complexo mundo social.
Se uma introdução ética de novas
tecnologias na sociedade depende de um diálogo democrático, porque ao invés de
aceitar o Uber como um fait accompli não considerarmos a ideia de Mike Konczal?
Um Fellow no Roosevelt Institute, Koczal sugeriu socializar o aplicativo,
lembrando que os populistas americanos criaram cooperativas para lidar com as
mudanças tecnológicas no final do século XIX.
Afinal, os motoristas já são donos
de quase todo o capital operacional (os seus carros), então porque não
distribuir o lucro de maneira comparável? Aí sim, poderíamos dizer que o
aplicativo fomenta uma verdadeira economia compartilhada. Mas se o Uber não
quer empregar motoristas, que seja então apenas uma provedora de software.
* Patrick Luiz Sullivan De Oliveira
é doutorando em História da Princeton University
por Patrick Luiz Sullivan De
Oliveira* —
CartaCapital
publicado 19/07/2015 04h55, última
modificação 19/07/2015 05h00
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