Por Rodrigo Carelli
A “Incrível História da Ilha das
Rosas” (Itália, 2020) foi uma das atrações da Netflix para o final do ano de
2020. O filme, que já se anuncia de pronto como uma história baseada em fatos
reais, mostra a intrépida aventura de Giorgio Rosa, um idealista que resolve
construir, na segunda metade da década de 1960, um país autônomo, onde se
pudesse exercer plenamente a liberdade. Para isso, como engenheiro, inventa uma
forma de montar uma plataforma de quatrocentos metros quadrados em pleno Mar
Adriático, fora das 6 milhas de águas territoriais da Itália. Conta para isso
com a sua astúcia e as suas próprias mãos, além da ajuda de amigo, filho do
dono de um estaleiro, que será seu sócio e componente do governo da nova nação,
a Ilha das Rosas.
Após construí-la, o primeiro passo
foi montar o governo (distribuindo os cargos entre os amigos), criar selos e
uma moeda, além de instituir o Esperanto como língua oficial. A novidade fez
com que a ilha tivesse a visita de vários turistas e levou ao recebimento de
vários pedidos de cidadania. A Itália não ficou satisfeita com este novo Estado
ao lado de sua costa e decidiu pôr fim ao empreendimento. Giorgio tentou se
socorrer até ao Conselho da Europa para manter em pé seu sonho, sem êxito,
sendo a plataforma destruída de modo épico, em confronto aberto entre os
libertários de mãos nuas e peito aberto contra a poderosa armada italiana. Ao
terminar o filme, dá vontade de nos empolgarmos a sermos também ávidos
defensores da liberdade!
Ah, a liberdade… Na película, o
tempo inteiro se fala de liberdade, sem, no entanto, explicar o que isso
realmente significa. Os personagens, aliás, discutem isso em algumas cenas, em
que são debatidos se algumas atividades, como o jogo de cartas, seriam
incluídas na ilha. Em momentos parecia que ninguém sabia muito bem o que era
aquilo que pretendiam ali.
Bom, essa é a história contada no
filme, o que não corresponde exatamente aos fatos. A Ilha das Rosas foi
empreendimento comercial de uma empresa, constituída por Giorgio Rosa com sua
esposa Gabriella, e que contava com investidores estrangeiros, como um suíço de
fama controversa e um inglês. A ideia de início era somente comercial, Giorgio
admitiu, para aproveitar o turismo em Rimini, praia italiana movimentada da
Emilia-Romagna, mas que, depois de várias exigências burocráticas
governamentais para a instalação de seu empreendimento, ele se rebelou e jurou
a liberdade: “Ah, sim? Então agora vou fazer um Estado para mim!” Fica assim
mais claro o que significa a liberdade que tanto queria. Em outra entrevista,
Giorgio afirmou que, para fugir do fato de que não podia fazer nada que os
políticos e os padres não queriam, e, sendo amante da liberdade, a única
solução seria se mudar para um país independente, “onde os inteligentes
pudessem comandar e os idiotas servirem”, mas que por duas razões não fez isso:
que todos os estados eram entrincheirados entre religiões e que não gostaria de
se afastar de sua pátria, da sua cidade e da sua família. Então pensou que a
solução seria fazer sua própria ilha onde existiria “a verdadeira liberdade,
onde pessoas inteligentes poderiam prosperar e os ineptos seriam expulsos”.
Agora sim podemos entender plenamente o conceito de liberdade que levou à
criação da Ilha das Rosas.
Giorgio não morava na plataforma, e
sim em terra firma, em Bolonha, a 117 quilômetros do mar de Rimini. A ilha era
somente habitada por Pietro Bernardino, o vigia, que depois teve a companhia de
um casal curioso. Os selos nunca foram usados de verdade, serviam somente para
a venda a colecionadores e turistas. Ninguém falava Esperanto, nem mesmo
Giorgio, que recorreu a um padre para traduzir a Constituição do Estado da Ilha
das Rosas. A ilha foi construída não pelas mãoes de Giorgio, mas sim por
trabalhadores braçais que realizaram o trabalho em condições climáticas terríveis.
E, conforme depoimento de um trabalhador que construiu a plataforma, Giorgio
não ficava muito feliz na hora de pagá-los. Na comédia da Netflix, esta faceta
fica escondida por detrás da figura cômica de seu sócio (que não existiu na
realidade, um estaleiro foi contratado), que falava que iria arregimentar
migrantes da pobre região da Calábria e não iria pagá-los para fazer o trabalho
de construção da plataforma. Giorgio sempre tratou a ilha como um negócio, uma
propriedade, e nada mais. Um negócio que pretendia estar fora do alcance das
leis de seu país e que as normas seriam por ele mesmo criadas e impostas.
Assim, o sonho não era de construir uma nação livre, mas sim um negócio livre.
Trata-se da confusão comum entre propriedade e soberania.
Na mesma época da Ilha das Rosas,
foi iniciada uma experiência semelhante: a Sealand. Paddy Roy Bates, ex-militar
britânico, ocupou uma plataforma abandonada por seu país, instituiu ali uma
nação e declarou-se rei. Posteriormente criou o lema desse país sem povo: “E
Mare, Libertas”, ou “no mar, a liberdade”. Em princípio utilizou a plataforma
como uma estação de rádio pirata para o público inglês. Sealand passou a vender
cidadanias e seu passaporte foi utilizado por vários criminosos, desde
traficantes de armas russos, passando por vendedores de haxixe marroquinos e
até pelo assassino do costureiro Gianni Versace. Atualmente o negócio do país é
vender títulos nobiliárquicos (por 29,90 libras você poder se tornar um lorde,
lady, barão ou baronesa), além de, talvez, sua maior jogada: tornar-se um
hospedeiro de servidores de dados, que seria o equivalente informacional a um
paraíso fiscal, abrigando sites de jogos, esquemas de pirâmide, pornografia
infantil e cibersabotagem empresarial. Da mesma forma que na Ilha das Rosas,
seu rei não habita a nação da liberdade. Em verdade, não há habitantes
permanentes ali, só empregados transitórios para realizar os serviços
necessários de manutenção.
Aqui nos aproximamos então ao outro
objeto deste texto: as plataformas digitais. Muitas características unem esses
dois casos com o cenário das plataformas digitais. A primeira delas é a
utilização da ideia da plataforma como desculpa para a fuga das leis. Desde a
Declaração de Independência do Ciberespaço realizada sugestivamente em Davos,
Suíça, de forma unilateral por John Perry Barlow em 1996, o espírito que move
as empresas do Vale do Silício é o descrito por
Lawrence Lessig: o Código (da Internet) é a Lei. Ou seja, a intenção é a
busca da liberdade por meio da transformação do algoritmo na lei e, assim, a negação das normas instituídas pelo
governo. A regulação estatal ameaça a liberdade, diz Lessig. A única regulação
possível na era da Internet é aquela dos codificadores.
É com base nesse espírito de
“liberdade” que se constituem as plataformas digitais, que afirmam pertencerem
ao mundo das ideias e dos dígitos e assim negam as soberanias estatais. Seriam
entes supra ou extranacionais e supra ou extra-estatais, portanto. Livres do
jugo governamental e, assim, de políticos e políticas que impedem a liberdade e
a inovação, poderiam então prosperar.
Com esse espírito passam a entrar
em todos os países desafiando as leis locais, que são tidas como inapropriadas
para regular o ciberespaço e suas empresas imateriais. Invadem mercados e questionam
suas regras. Desafiam a tributação, pois
não pertencem ao espaço físico dos países em que atuam. Desejam nada mais e
simplesmente a liberdade.
As ideias, no entanto, tal qual em
Ilha das Rosas e em Sealand, não correspondem aos fatos. Ninguém habita o
ciberespaço, que é um não-lugar. Nenhuma
atividade humana é realizada no ciberespaço, e sim por meio dele, em pontas
sempre conectadas a um ponto físico no mundo real. É ali que as transações são
efetivamente realizadas e completadas. Suas atividades econômicas têm efeito no
mundo real e não em um espaço fictício. A imaterialidade das plataformas
digitais pertence a um imaginário, e só sonhadores, desavisados ou espertalhões
acreditam nisso. A Uber, por exemplo, não seria nada se não alugasse a infraestrutura
física da Amazon para montar sua base de dados, a partir da qual coordena as
operações no mundo físico em várias cidades do mundo, apoiando-se inclusive em
aluguel de espaços em shoppings centers e aeroportos para seus clientes. O
serviço prestado pela Uber não está em um espaço cibernético imaterial, mas sim
é realizado diuturnamente nas cidades ao redor do mundo, e para isso realiza
todo tipo de atividade necessária: desde lobbies, passando por defesas
jurídicas e chegando a atendimento ao público e controle de trabalhadores. A
pretensão dos seus clientes não é a utilização de um serviço cibernético, mas
sim se locomover ou que comida chegue à sua porta. Assim, também as plataformas
digitais tentam se sustentar em uma forçaçâo de barra.
O outro ponto em que todas essas
plataformas, tanto as físicas quanto as digitais, tentam se apoiar e não tem
consistência nenhuma é a defesa da liberdade.
Liberdade é uma noção tão potente
quanto fluida de sentido.
Quem não deseja a liberdade?
Quem se opõe à liberdade?
O que é liberdade?
Quem é livre?
Livre de quê?
Livre do quê?
Livre para quê?
Em uma sociedade a liberdade não é
encontrada, ela é instituída, como nos mostra Muriel Fabre-Magnan. Em uma
sociedade sem regras coletivamente instituídas não há liberdade, e sim
barbárie. Liberdade, ao contrário do que dizem os plataformistas, não é poder
fazer o que se quer, mas sim que alguém não seja impedido de fazer o que não
for proibido. Um mundo mais livre não é um mundo sem leis, mas, ao contrário,
aquele com normas que protejam adequadamente as liberdades. Uma sociedade
democrática é tida como livre não porque não haja interditos, mas sim porque as
proibições são instituídas a partir de regras estatuídas coletivamente,
garantindo a liberdade. É o interdito, a proibição, que instituí a liberdade.
Uma pessoa é livre não porque pode matar quem ela quiser, mas sim porque não é
permitido que a matem.
Tomemos o exemplo da liberdade
religiosa. Eu só tenho liberdade religiosa se houver a garantia que ninguém –
um Estado ou qualquer pessoa – me imponha uma religião ou os seus valores
religiosos. Minha liberdade está fundada na proibição de imposição do pensamento
religioso. O proselitismo, ao contrário de ser um ato de liberdade, é um ato
atentatório à liberdade religiosa. A inexistência de freios para que religiosos
assumam postos governamentais e legislativos são atos que atentam contra a
liberdade religiosa, pois possibilitam a imposição de crenças por meio das leis
e de atos de governo.
Outro exemplo: a Covid-19. Alguns
movimentos se baseiam no discurso da liberdade para negarem ter que cumprir o
distanciamento social, fechar temporariamente negócios, usar máscaras e tomar
vacinas. A Nova Zelândia está praticamente livre do vírus desde junho de 2020.
Não há necessidade de distanciamento social, não se usa máscaras e estádios de
rúgbi e arenas de rock estão lotadas. O Natal e o Ano Novo foram realizados com
a aglomeração que as pessoas desejassem. A liberdade, enfim, foi alcançada.
Como isso se deu? O governo neozelandês atuou fortemente, isolando o país,
seguindo todas – todas – as recomendações científicas, fechando (de verdade)
todas as atividades econômicas não-essenciais, testando em massa e verificando
as pessoas que tiveram contato com os casos positivos. Houve séria restrição de
direitos civis e econômicos durante este período, estatuída coletivamente, mas
hoje, os negócios prosperam e as pessoas vivem a vida como antes da pandemia. Qual sociedade é mais
livre: a que aceitou as duras restrições ou a que usa o lema da liberdade para
não aceitar as medidas de proteção durante a pandemia?
Os libertários desejam tudo, menos
liberdade; são em verdade autoritários que desejam potestade. Confundem
liberdade com arbítrio. Buscam soberania sob o pretexto de atingir autonomia.
Procuram a barbárie, a imposição de sua vontade sobre os demais.
Uma das frases citadas de Giorgio
Rosa mostra muito bem a natureza do desejo libertário: a sociedade desejada é
aquela em que pode garantir a prosperidade e o comando dos “inteligentes”, a
servidão dos “idiotas” e a expulsão de “ineptos”, na qual um negócio pode ser
realizado livremente de imposições ambientais, de segurança e trabalhistas.
Giorgio não gostava de pagar corretamente seus trabalhadores: as plataformas
digitais também não. Enquanto no filme, Giorgio contratava migrantes calabreses
que afinal não eram pagos, as plataformas digitais contratam trabalhadores na forma
de subemprego, muitas vezes com pagamento de valores ínfimos e havendo casos em
que permitem a sonegação de pagamento por trabalhos realizados.
A liberdade que desejam é de serem
livres para imporem sua própria vontade sobre os demais. Isso não é liberdade,
isso é o que se vê na selva – e não estamos nos referindo aos humanos que lá
vivem.
Por Rodrigo Carelli